O poeta Mia Couto nasceu em 5 de julho de 1955, na cidade da Beira, em Moçambique. Ele começou a estudar Medicina, mas abandonou o curso para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Na escrita, ele estreou com o livro de poesia “Raiz de Orvalho” (1983), mas foi com o romance “Terra Sonâmbula” (1992) que ganhou projeção internacional. Ele, em 2013, recebeu o Prêmio Camões.
Obras poéticas do autor:
- Raiz de orvalho e outros poemas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 1999.
- Idades cidades divindades. Maputo/Moçambique: Sociedade Editorial Ndjira, 2007; 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2007.
- Tradutor de chuvas. 1ª ed., Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2011.
- Vagas e lumes. 1ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 2014.
Apresento 7 poemas significativos do poeta Moçambicano. Boa leitura!
1. Saudade
Que saudade
tenho de nascer.
Nostalgia
de esperar por um nome
como quem volta
à casa que nunca ninguém habitou.
Não precisas da vida, poeta.
Assim falava a avó.
Deus vive por nós, sentenciava.
E regressava às orações.
A casa voltava
ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.
2. Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
3. A adiada enchente
“Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome”
4. Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios umedeça
a primeira palavra do teu corpo.
5. O Espelho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
6. O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
7. Autobiografia
Onde eu nasci
há mais terra que céu.
Tanto leito é uma bênção
para mortos e sonhadores.
E de tão pouco ser o céu
nasce o sol
em gretas nos nossos pés
e os corações se apertam
quando remoinhos de poeira
se elevam nos telhados.
As mães
espanam o teto
e poeiras de astros
cobrem o soalho.
De tão raso o firmamento,
a chuva tropeça nas copas
enquanto nuvens
se engravidam de rios.
Com tanta escassez de céu
não há encosto
nem para a mais minguante lua
e os meninos,
na ponta dos dedos,
ascendem estrelas.
Pois,
nessa terra
que é tanta para tão pouco céu,
calhou-me a mim ser ave.
Pequenas que são,
as minhas asas parecem-me enormes.
Envergando,
escondo-as dos olhares vizinhos.
Nas minhas costas
pesam
versos e plumas.
Voarei,
um dia,
sem saber
se é de terra ou de céu
a pegada do voo que sonhei.