Os poemas estão listados no documento oficial de obras de referência para o PAS 3, disponível no site da UnB.
São 12 poemas, boa leitura…
1. Elegia 1938 – Carlos Drummond de Andrade
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
2. Reinvenção – Cecília Meireles
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
3. A Lágrima – Augusto dos Anjos
– Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Cloreto de sódio, água e albumina…
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!
-“A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina”
– O farmacêutico me obtemperou. –
Vem-me então à lembrança o pai Yoyô
Na ânsia física da última eficácia…
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
4. Evocação do Recife – Manuel Bandeira
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão…)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
5. Casamento – Adélia Prado
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
6. Ensinamento – Adélia Prado
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
‘coitado, até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água
quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
7. Quintal – Meimei Bastos
quando eu era pequena e só sentia bom quintal, ruim briga, e brincava de tatu bolinha comendo bananinha de trevo de quatro folhas, azedinha, até a Lua aparecer e meu paraíso virar céu inteiro, nesse tempo, não sabia que o lugar onde eu vivia tinha nome, causa e classe.
era só quando saía, várias distâncias em horas de baú, que percebia, na rua asfaltada, casas rebocadas, gente vestindo roupa de sair em casa que o canto onde minha casa pousava era diferente.
minha mãe dando faxina, minha mão coçando pra malinar. meu olho desacostumado com tanta parede pintada, água encanada, com um quarto só de livro, outro só de brinquedo. puxa! eu não entendia: por que ali tinha e lá em casa não?
hoje eu sei, e ainda não aceito.
alegria quando tomava o Danone que a dona dava e dizia: que menina inteligente! cuidado pra não se perder! ‘pessoa de bem’ fazendo sua parte, cumprindo sua cota de caridade.
dizia isso porque não sabia que eu já era graduada na vida. daquele tamaninho eu já cuidava dos meus irmãos e sobrinho, já tinha ouvido mais de várias vezes no dia tiro, já tinha vizinho finado de bala. lá antes de nós nascer já tinha perdido um bocado de liberdade e direitos. ela dizia pra eu não me perder. o quê, dona? ainda tem mais pra perder? hoje eu sei. se nós não cuidar tem. eles sempre dão um jeito de tirar mais onde não tem.
era minha mãe acabar de passar as roupas e a gente ia embora. eu ficava contando estrada. logo depois do balão que tinha um periquito eu sabia que tava perto. na entrada, morava uma santa, que o povo chamava de Maria, Santa Maria.
quando chegava em casa, via meus irmãos, o Brendinho. dividia os biscoitos que minha mãe tinha me dado pra comer no caminho e corria pro quintal pra ver o céu. pedia pra maínha temperar a água pra eu banhar, ali mesmo, na bacia, no terreiro.
aí, eu imaginava que o teto da minha casa era todo de estrelinhas…
e era.
8. Não vou mais lavar os pratos – Cristiane Sobral
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros…
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo
E joias de ouro
Legítimas
Está decretada a lei áurea.
9. recomeço (s.m.) – Aka Poeta
recomeço (s.m.): é aceitar o que ficou no passado como o que deve ser: passado. é entender de uma vez por todas que o amor acaba, mas você continua (e que nem tudo que deuxa de ser presente, deixa de ter valor). é o que um dia me ensinou o palhaço e seus sapatos: quando um pé vai para a frente, o outro obviamente fica para trás.
é dar a si mesmo uma segunda chance e um punhado de paz.
10. rodofernália – Nicolas Behr
Desço aos infernos escadas rolantes
Rodoviária de Brasília
Teu corpo boiando no óleo que ferve
Um pedaço do seu coração
O sangue de Cristo aqui não é pão
Subo aos céus escadas rolantes
Rodoviária de Brasília
O corpo de Cristo aqui não é pão
Pastel de carne com lentilha
O sangue de Cristo aqui não é vinho
É caldo de cana se adoçam com isso
O padroeiro desta cidade será Dom Bosco
Ou Padim Ciço
Brasília passa por baixo do meu bloco todo dia
Brasília já teve de mim o pedaço que queria
Brasília já teve de mim o pedaço que queria
Confiro nas axilas o pedaço que fedia
Faltam blocos na minha quadra
Faltam dentes na minha boca
O meu bloco é redondo como o cubo
E azul como uma laranja oca.
11. Tecendo a manhã – João Cabral de Melo Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
12. Poemas de Colonização – Oswald de Andrade
A TRANSAÇÃO
O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café
FAZENDA ANTIGA
O narciso marceneiro
Que sabia fazer moinhos e mesas
E mais o Casimiro da cozinha
Que aprendera no Rio
E o Ambrósio que atacou
Seu Juca de faca
E suicidou-se
As dezenove pretinhas grávidas
NEGRO FUGIDO
O Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando pilão na cozinha
Entraram
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu montaram nele
O RECRUTA
O noivo da moça
Foi para a guerra
E prometeu se morresse
Vir escutar ela tocar piano
Mas ficou para sempre no Paraguai
CASO
A mulatinha morreu
E apareceu
Berrando no moinho
Socando pilão
O GRAMÁTICO
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era Sipantorrou
O MEDROSO
A assombração apagou a candeia
Depois no escuro veio com a mão
Pertinho dele
Ver se o coração ainda batia
CENA
O canivete voou
E o negro comprado na cadeia
Estatelou de costas
E bateu coa cabeça na pedra
O CAPOEIRA
– Qué apanhá sordado?
– O quê? – Qué apanhá?
Pernas e cabeça na calçada
MEDO DA SENHORA
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada
LEVANTE
Contam que houve uma porção de enforcados
E as caveiras espetadas nos postes
Da fazenda desabitada
Miavam da noite
No vento do mato
A ROÇA
Os cem negros da fezenda comiam feijão
Abóbara chicória e cambuquira
Pegavam uma roda de carro
Nos braços azorrague
– Chega! Perdoa!
Amarrados na escada
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura
RELICÁRIO
No baile da
Corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha da Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
Ê comê bebê pitá e caí
SENHOR FEUDAL
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia